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segunda-feira, 26 de maio de 2014

O derretimento de gelo e seus impactos na vida do planeta

Em entrevista à Carta Maior, Jefferson Simões, pesquisador do Programa Antártico Brasileiro, fala sobre o derretimento de gelo e seus impactos no planeta.





Marco Aurélio Weissheimer
Arquivo pessoal

Porto Alegre - A situação do derretimento de gelo no planeta e seus impactos sobre o clima, o meio ambiente e a vida humana são preocupantes. Houve um erro em termos de comunicação social, há alguns anos, ao se passar a ideia de que o mundo iria acabar. Como não acabou imediatamente, parece que está tudo bem. Isso vai custar muito para a humanidade, mas não vem do dia para a noite. O processo de mudanças climáticas no sistema global é gradativo, com aceleração em alguns momentos e aumento de eventos extremos em outros. Não estamos tomando as medidas que precisaríamos tomar e seguimos em frente, até que uma catástrofe, uma situação-limite, provoque uma mudança. A avaliação é do glaciologista brasileiro Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e diretor do Centro Polar Climático da UFRGS.

Em entrevista à Carta Maior, Jefferson Simões, um dos principais pesquisadores do Programa Antártico Brasileiro, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera e delegado nacional no Scientific Committee on Antarctic Research (SCAR) do Conselho Internacional para a Ciência, fala sobre os processos de derretimento de gelo hoje no planeta e suas implicações ambientais, econômicas e mesmo geopolíticas.

No dia 31 de março deste ano, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês) divulgou um relatório afirmando que o impacto o aquecimento global será “grave, abrangente e irreversível”. O documento foi apresentado como sendo a avaliação mais completa já feita sobre o impacto das mudanças climáticas no planeta. Segundo o relatório, até aqui os efeitos dessas mudanças foram sentidos principalmente pela natureza, mas, daqui em diante, o impacto direto sobre a humanidade será cada vez maior, atingindo áreas como saúde, habitação, alimentação e segurança da população. Na entrevista à Carta Maior, concedida em seu gabinete na UFRGS, Jefferson Simões explica qual está sendo a contribuição dos processos de derretimento de gelo neste processo:

 “Existe um cenário factível apresentado pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), que é de um aumento do nível do mar de 20 centímetros a um metro até o ano de 2100. O que não sabíamos há dez anos era que a Antártica estava contribuindo mais para esse processo. Por enquanto é pouco, cerca de meio milímetro por ano, mas com possibilidade de ultrapassar um milímetro ou mais ao longo desse século e depois, quem sabe, num evento extremo, contribuir com um metro de elevação”, adverte.

Qual a situação atual do problema do degelo no planeta? O que há de verdade e o que há de desinformação em torno desse tema?

Jefferson Simões: A primeira coisa que é preciso entender é que, no planeta Terra, nós temos dois tipos de gelo: gelo frio e quente. Nós temos o gelo de geleira, formado através de precipitação e que se acumula durante milhares de anos formando geleiras que têm alguns quilômetros quadrados de extensão e formam o grande manto de gelo da Antártica, com 13,6 milhões de quilômetros quadrados, com uma espessura que chega a quase cinco quilômetros de gelo. A média da espessura desse manto de gelo é de 2.100 metros. Esse é o gelo que está em cima do continente antártico. Evidentemente, se ele começa a derreter, a água vai para o oceano e isso vai aumentar o nível do mar. Infelizmente, isso muitas vezes é confundido com outro tipo de gelo que temos no planeta Terra e que nós chamamos de mar congelado. Na literatura antiga brasileira, era chamado de banquisa. Isso nada mais é o mar que, em função da temperatura baixa na superfície do oceano, forma uma película de gelo de um, dois, no máximo cinco metros de espessura. Isso ocorre basicamente em todo o Ártico e também ao redor da Antártica. Esse gelo pode desaparecer completamente. Isso teria implicações climáticas, mas nenhuma implicação quanto ao nível dos oceanos. Muitas vezes, quando se anuncia o derretimento do gelo marinho do Ártico, se confunde isso com o derretimento de gelo da Groenlândia, que também é um manto de gelo.

Nós temos hoje no planeta Terra dois mantos de gelo: o da Antártica, com 13,6 milhões de quilômetros quadrados, e o da Groenlândia, com 1,7 milhões de quilômetros quadrados. Isso representa 96% do volume de gelo do planeta, sendo que 90% desse volume está na Antártica.

Uma das grandes questões na ciência ambiental hoje em dia e também na ciência da glaciologia (que é a ciência da neve e do gelo em todas as suas formas) é: qual é o balanço de massa do gelo existente no planeta em relação às ações e fenômenos ambientais como o aquecimento global. Nós temos um monitoramento de geleiras pequenas nos últimos 140 anos. Há uma bateria de dados muito antigos. Não é verdade que só temos dados dos últimos 30 ou 40 anos, como algumas pessoas dizem. O que sabemos hoje é que aqueles locais onde há gelo perto do ponto de fusão, o que ocorre basicamente em todas as montanhas, nas regiões tropicais e temperadas, o aquecimento observado ao longo do século 20 (0,8 graus centígrados em média, nos últimos 140 anos) já começou a afetar esse gelo. Esse degelo está contribuindo para o aumento do nível do mar. Outra parte que também está contribuindo muito é o sul da Groenlândia. A maior parte hoje do aumento do nível do mar está vindo dessa região e de geleiras na periferia da Antártica. O volume de gelos das montanhas representa apenas 1% do gelo do planeta, portanto sua contribuição para a elevação do nível dos oceanos é menor.


Os cenários elaborados pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change)   têm variado de uma elevação mínima de 20 centímetros, até 2100, chegando a um máximo de um metro, em casos mais dramáticos mas ainda realistas.

O que está acontecendo especificamente no caso da Antártica?

Jefferson Simões: Para responder a essa questão, em primeiro lugar é preciso ter a consciência de que a Antártica é muito grande. Até 1989 nós não tínhamos nem definido a forma precisa desse continente. Começamos a ter as imagens mais completas da Antártica, com fotos de satélites, só início da década de 1990. Só conseguimos começar a medir a variação da espessura do manto de gelo da Antártica nos últimos dez anos com o ingresso em órbita de dois novos satélites de alta precisão. O volume de gelo é muito grande. Estamos falando de 25 ou 26 milhões de quilômetros cúbicos de gelo. Para ter uma ideia mais clara desse número, isso equivale a uma camada de quase três quilômetros de gelo preenchendo por igual todo o território brasileiro. Recentemente, dois novos satélites, o Icesat e o Criosat, começaram a fazer essas medidas sobre a altura o manto de gelo e trouxeram novos dados. Como resultado disso, tivemos nas últimas semanas a publicação de vários artigos revisando as avaliações sobre o comportamento do manto de gelo na região nos últimos anos.

 A Antártica é dividida em três partes. Temos a península Antártica, que é a região mais amena e mais próxima da América do Sul, onde o gelo está perto do ponto de fusão e está derretendo, contribuindo para o aumento do nível do mar. Cerca de 90% das geleiras desta região estão recuando e perdendo massa. Junto com isso há uma série de processos ambientais ocorrendo na região. A água da superfície do oceano está ficando mais fresca e está diminuindo a sua salinidade, começam a aparecer algumas espécies exóticas de gramíneas e liquens. Essa é uma das áreas que mais aqueceu no planeta todo, cerca de 3,1 graus centígrados. Mas todos esses fenômenos não são exatamente novidades. Já sabíamos disso há cerca de vinte anos. O que os artigos mais recentes trazem de novo são os dados do monitoramento realizado pelos satélites Icesat e Criosat sobre a espessura do manto de gelo da Antártica.

Esse manto é dividido em duas partes: ocidental e oriental. O oriental, localizado ao sul dos oceanos Índico e Pacífico, tem aproximadamente 70% do gelo da Antártica. Outros 25% estão no manto de gelo ocidental, localizado ao sul do Atlântico e do Pacífico sudeste. A península tem menos de 3% de todo gelo do continente. O manto de gelo da Antártica oriental é muito frio, com gelo a menos de 60 graus centígrados e chegando a cinco quilômetros de espessura. Esse gelo não derreterá em função de um aquecimento de dois, três ou quatro graus, e não temos evidência nenhuma de que esteja derretendo. Mas o manto de gelo da Antártica ocidental, cujo volume é menor e onde o gelo está a menos dez, vinte ou trinta graus tem uma característica própria: em muitas áreas, a rocha, o substrato onde ele está assentado, está situado abaixo do nível do mar. Além a atmosfera, a água do oceano nesta região está aquecendo, com potencial de lubrificar por baixo plataformas de gelo, fazendo com que elas deslizem e depois recuem em movimentos abruptos, jogando mais gelo no mar.

E esse fenômeno vem aumentando?

Jefferson Simões: Os artigos mais recentes afirmam que essa parte da Antártica está mostrando os primeiros sinais que esse processo já iniciou. Um deles diz que a contribuição atual do degelo na Antártica para o aumento o nível do mar, que é de 0,2 milímetros por ano, pode, em cem anos, aumentar para dez vezes mais. Parece que esse processo já iniciou e até o fim deste século, a região deve estar contribuindo com algo em torno de dez centímetros por século no aumento do nível os oceanos. Outros artigos sustentam que em um período entre dois e nove séculos esse processo pode se acelerar, não por derretimento, mas pela instabilidade dinâmica das geleiras, contribuindo para a elevação de quatro a cinco metros no nível dos mares.

Um aumento de um metro por século seria catastrófico. Existem evidências de que isso já ocorreu em um passado muito distante, no final das idades de gelo, há cerca de 126 mil anos, quando houve um aumento abrupto, em 500 anos, de até cinco metros no nível do mar. Agora, note que em momento algum da nossa conversa aqui eu referi aqueles números absurdos que volta e meia aparecem sobre a elevação do nível dos mares. Eu já ouvi gente falando em 60 ou 70 metros e imagens mostrando o Rio de Janeiro embaixo d’água. Isso não existe, sequer é viável fisicamente. Eu sei de onde saiu esse número. O que as pessoas dizem? Se o gelo da Antártica e da Groenlândia derretesse o nível do mar aumentaria 60 metros. Mas ninguém pergunta se isso é viável fisicamente ou quando é que foi a última vez que algo assim aconteceu. Pois a última vez foi há mais 35 milhões de anos. Há 40 milhões de anos, não havia geleiras no planeta Terra.

O momento que vivemos na história do planeta Terra é raro em termos geológicos. Nós temos glaciação nos dois hemisférios e nas duas regiões polares. Em termos da escala humana, nós evoluímos exatamente neste período, o que é interessante. A evolução dos hominídeos e o assentamento da espécie humana ocorre neste período de muita variação de clima, com idades de gelo e interglaciais que é o que estamos vivendo nos últimos dez mil anos.

Então, existe um cenário factível apresentado pelo IPCC, que é de um aumento do nível do mar de 20 centímetros a um metro até o ano de 2100. O que não sabíamos há dez anos era que a Antártica estava contribuindo mais para esse processo. Por enquanto é pouco, cerca de meio milímetro por ano, mas com possibilidade de ultrapassar um milímetro ou mais ao longo desse século e depois, quem sabe, num evento extremo, contribuir com um metro de elevação.

Além do aumento do nível dos mares, o degelo influi também no processo de mudanças climáticas. Que contribuições o derretimento dá para as mudanças o clima?

Jefferson Simões: O problema não se dá pelo derretimento das geleiras, uma vez que elas derretem na própria região polar e não mudam muito o balanço de energia do planeta. O grande receio aí está no outro gelo. A variação de gelo marinho ao redor da Antártica é a maior variação sazonal conhecida na natureza. O gelo marinho varia de 1,8 (no auge do verão, em fevereiro) a 20 milhões de quilômetros quadrados ( no final do inverno) em cinco ou seis meses. O mesmo processo ocorre no Ártico. Nos últimos trinta anos e, especialmente, na última década, a extensão mínima dele decresceu mais de 50%, caindo de 7 milhões de quilômetros quadrados para algo em torno de 4 milhões de quilômetros quadrados, no auge o verão, que ocorre no final de setembro. Isso muda sim o clima.

 No momento em que se altera a extensão do mar congelado, muda também o balanço de energia, ou seja, mais energia vai sair do oceano para a atmosfera do Ártico, que é uma região mais aquecida que a Antártica. Com isso, diminui a pressão atmosférica entre a região polar ártica e a região temperada, o que implica mudança dos padrões de circulação atmosférica. Então, o Ártico está aquecendo, derretendo gelo, mudando a quantidade de energia que sai do oceano para a atmosfera, e alterando o padrão dos ventos e da circulação. Isso ajuda a entender alguns eventos extremos que estamos presenciando agora, na América do Norte, onde alguns lugares têm ondas de frio e outros têm ondas de calor, na mesma latitude. Isso está claro. Estamos vendo mais eventos extremos na região polar ártica.

Além disso, há outros impactos ambientais. Diminuindo a extensão do gelo marinho, muda a cor do planeta, aumenta o nível de radiação incidindo sobre os micro-organismos que são base da cadeia alimentar o que provoca uma série de outros problemas. Essas mudanças ambientais sempre ocorreram e sempre vão ocorrer, mas elas ocorriam em velocidades menores. O problema da interferência humana é a alteração para mais dessa velocidade.

O derretimento de massas de gelo também provoca efeitos sociais, como ocorre agora na região dos Andes, onde está associado com problemas de abastecimento de água. Como está essa situação nos Andes?

Jefferson Simões: O derretimento de gelo nas regiões montanhosas tem provocado uma série de problemas relacionados com o armazenamento de água. Cerca de 70% da água de La Paz vem de derretimento de gelo. Há um excedente de água no começo em função do derretimento, mas falta um bom armazenamento. É como se fosse uma represa e você começa a perder a represa.
 
Os países andinos, especialmente Bolívia e Peru, estão muito preocupados e há projetos do Banco Mundial para enfrentar esse problema. Nós estamos com um projeto para mapear várias dessas geleiras. Há um fato interessante aí que é que nós não sabemos ainda quais são as implicações do desaparecimento de parte dessas geleiras para a bacia amazônica. Uma das questões a elucidar diz respeito ao impacto do transporte de sedimentos resultantes do degelo nestas barragens que estão surgindo em Rondônia. Ou seja, estamos começando a associar gelo com Amazônia, o que não chega a ser uma surpresa, pois o sistema todo é indiviso.

No Ártico, que tem uma população de aproximadamente 4 milhões de pessoas, nós já estamos tendo alguns problemas: mudança de modo de vida das populações locais; problemas estruturais em construções por causa do derretimento do solo congelado, conhecido como permafrost. No caso do desaparecimento do gelo do Ártico temos também algumas oportunidades aparecendo, como a possibilidade de diminuir as rotas entre a Europa e o nordeste dos Estados Unidos para a Ásia. Isso significa custos menores no transporte, mas também abre a possibilidade de conflitos. Quem é o proprietário e tem direito de explorar os recursos naturais do Ártico que estão ficando mais acessíveis em função do degelo? A Rússia considera grande parte do Ártico seu território ou, pelo menos, seu quintal. Então, o derretimento do gelo vai afetar questões da economia e da geopolítica mundial.

Além da parte científica, o seu trabalho também tem uma dimensão política que é o acompanhamento das negociações internacionais para enfrentar esses problemas. Como é que você analisa a evolução dessas negociações?

Jefferson Simões: Não está havendo avanço. A grande questão é a seguinte: quem é que vai pagar a conta? Há um custo embutido nas medidas que precisam ser tomadas e, apesar de todo discurso ambientalista em favor da sustentabilidade, nós não mudamos o nosso modo de vida. Tomemos, por exemplo, a própria política do governo brasileiro nos últimos anos de incentivar a produção e comercialização de automóveis sem fazer um esforço semelhante para ampliar o transporte coletivo urbano. Nós vamos ter que reestudar toda a nossa política energética e, talvez, considerar que, em alguns casos, a energia nuclear é uma alternativa menos poluente para enfrentar esse problema mais imediato do aquecimento. O que não significa dizer, obviamente, que ela não tenha problemas. Não podemos mais ter uma visão mágica e acreditar que uma única fonte de energia pode resolver todos os problemas.

O que todos querem no mundo hoje? Aumento de população com recursos ilimitados a nossa disposição, com queima de energia ilimitada para melhorar a qualidade de vida de toda essa população, sem avaliar muito a situação. É assim que estamos nos comportando. Até que uma catástrofe, uma situação-limite provoque uma mudança. Eu não vejo avanço nenhum nos últimos anos. Estamos mais conscientes, de modo geral, o problema ambiental está em todas as agendas, mas em termos práticos não avançamos muito. Em relação a alguns temas, o que podemos fazer é mitigar os problemas e nos adaptar. Precisamos nos preocupar principalmente com o impacto daquelas populações que têm menos condições.

A situação é preocupante. Houve um erro em termos de comunicação social, há alguns anos, ao se passar a ideia de que o mundo iria acabar. Como não acabou, parece que está tudo bem. O processo de mudanças climáticas no sistema global é gradativo, com aceleração em alguns momentos e aumento de eventos extremos em outros. Isso vai custar muito para a humanidade, mas não vem do dia para a noite.

E dentro da comunidade científica esse tema está resolvido? Qual é o peso das correntes dos céticos e negacionistas climáticos?

Jefferson Cardia Simões: Não existe corrente dos céticos. Esse foi um problema gerado pela imprensa, por não entender como é que a ciência funciona. A ciência, em especial as ciências da natureza, funciona por evidências, não por discursos. Em 2008, 2009, tivemos vários meios de comunicação que procuravam dar o mesmo espaço para diferentes opiniões, como se fosse uma questão de discurso. As ciências naturais não funcionam com base em discurso ou na dialética. Hoje, 98% dos artigos científicos e das opiniões dos cientistas tem uma mesma posição bem clara. Há 2% dos artigos que dizem que não é bem assim. E há um grupo de negacionistas, que não são céticos e que escondem ideologias conservadoras ou teorias da conspiração.
 
Em alguns casos, há lobbies políticos financiando essas opiniões, como ocorre com  setores da extrema-direita norte-americana agrupados no Tea Party e em outros grupos reunidos no Partido Republicano. Esses grupos adotaram uma política há cerca de 25 anos que repete a lógica adotada em relação à indústria do fumo: temos que postergar medidas o máximo possível, pois isso nos dá prejuízo econômico. Daí se nega o que está acontecendo, muitas vezes se nega o próprio racionalismo. A principal crítica da comunidade científica para esses grupos consiste em perguntar: apresentem outra alternativa para o que estamos vendo. Eles não têm.


Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/O-derretimento-de-gelo-e-seus-impactos-na-vida-do-planeta/3/31007

Frente parlamentar contra áreas protegidas para quê?
Marc Dourojeanni (Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza.)- 22/05/14

camara-deputadosCâmara vazia, cena comum e retrato da falta falta de vontade política para disponibilizar recursos de regularização fundiária e de resolver problemas que já cabem aos deputados. Foto: Eduardo Beltrame
Por que os parlamentares criam uma frente parlamentar para atacar um assunto que está nas mãos deles mesmos resolver? Acaso não foram eleitos para propor, estudar e aprovar leis? Por que não votam leis que permitam financiar as desapropriações e atender com justiça e humanidade os reassentamentos que a lei determina?
A criação formal, sustentada por 42% dos membros da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional do Brasil, de uma "Frente Parlamentar em Defesa das Populações Atingidas por Áreas Protegidas" deixou a sociedade perplexa. O desconcerto cresce quando se lê a justificativa e os objetivos da iniciativa que, dentre outras peculiaridades, demonstram que esses responsáveis pelo futuro da nação na realidade estão simplesmente propondo usar as áreas protegidas e as terras indígenas desenvolvendo nelas atividades econômicas ilegais e incompatíveis ou, melhor, eliminando-as. A única virtude da iniciativa é a sua originalidade que faz dela um caso único na história da humanidade. Com efeito, jamais se tinha visto que representantes eleitos de uma nação decidam de forma tão massiva e óbvia dedicar seus esforços a prejudicar seu próprio patrimônio natural.
A simples leitura do material preparado pelos promotores da Frente, especialmente para quem não está a par da situação das terras indígenas e das áreas protegidas, não parece tão ruim assim. A Frente declara se centrar na defesa dos direitos das supostas vítimas do estabelecimento dessas áreas de uso restrito e propõe ações que a priori são lícitas. Mas, começando pelas afirmações falsas e erros dos autores, a má fé da proposta resulta evidente. Afirma-se, por exemplo, que "o Brasil é o país com maior número de áreas protegidas do mundo" ou que esse "importante mecanismo de proteção foi transformado em meras efemeridades ambientais, foco de conflitos sociais". Também se afirma que há "uso de violência e abuso de poder como instrumentos de desocupação das áreas" e que a demora nos processos de indemnização constitui "ato repugnante que deteriora todo o sistema democrático de direito" e que os atingidos pelas áreas protegidas e terras indígenas são colocados "em situação de vulnerabilidade econômica e social". Para resumir, as terras indígenas e quilombolas e as áreas protegidas seriam a causa de uma gravíssima situação de injustiça, que coloca em perigo a paz social. E tudo isso seria consequência de obedecer à legislação, a começar pela própria Constituição.
Confundir para atacar
"As terras que somam ao redor de 110 milhões de hectares outorgadas, ou em processo de outorga a indígenas e quilombolas não são áreas protegidas pela própria definição e, claro, tampouco por lei. Elas são um direito constitucional dos povos indígenas e quilombolas e são geridas pela FUNAI"
Primeiro os promotores da Frente fazem um esforço para confundir denominando as terras indígenas e quilombolas como "áreas protegidas". A única equivalência universalmente aceita para área protegida é o que no Brasil denomina-se Unidade de Conservação. As terras que somam ao redor de 110 milhões de hectares outorgadas, ou em processo de outorga a indígenas e quilombolas não são áreas protegidas pela própria definição e, claro, tampouco por lei. Elas são um direito constitucional dos povos indígenas e quilombolas e são geridas pela FUNAI, organismo adscrito ao Ministério da Justiça. De outra parte, as áreas protegidas ou unidades de conservação se estabelecem para proteger amostras da natureza, manter os seus serviços ambientais e fomentar o turismo. Elas somam ao redor de 90 milhões de hectares, incluindo as que são federais (74 milhões de hectares), estaduais, municipais e privadas. As federais são administradas pelo ICMBio que está subordinado ao Ministério do Meio Ambiente. Não é, pois, admissível acreditar que os deputados federais não saibam isso que todo cidadão conhece ou deveria conhecer desde a escola.
Esse "erro" está na base da afirmação falsa de que o Brasil é o país que tem o maior número de áreas protegidas no mundo. O fato é que embora o Brasil tenha um número elevado de áreas protegidas -- o que longe de ser mérito é problema para a gestão -- não é o país que proporcionalmente mais protege. Apenas na América Latina há uns dez países que em percentual do seu território protegem muito mais terra que o Brasil. Mais adiante o documento da Frente convenientemente esquece o fato de que a maior parte das unidades de conservação, em especial as estaduais, é de uso sustentável, com população no seu interior e com direito ao uso dos recursos inclusive atividades agropecuárias, em alguns casos sem limites como na categoria de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Não existem "atingidos" nessas categorias. Por isso é fácil deduzir que o verdadeiro objetivo da Frente se centra nas terras indígenas e quilombolas.
Todas as outras afirmações feitas na justificativa são igualmente mentiras ou meias verdades. Já outros autores questionaram a veracidade de uso da violência e abuso de poder para retirar ocupantes ilegais das unidades de conservação e no caso de terras indígenas. Se a força policial foi usada nestas últimas é de conhecimento público que isso foi a reação do estado de direito mediante decisões judiciais às atitudes de desobediência e violência dos que deviam sair. Não existem, pois, "atitudes repugnantes que deterioram o sistema democrático de direito".
Descaso
"A raiz da crise atual está na leniência das autoridades que não deram nem dão prioridade ao pagamento da desapropriação ou indenização devida e que deixam ocupar e invadir as terras que deveriam defender"
Mas, quem são as vítimas, ou seja, os atingidos que os deputados querem defender? As vítimas são os proprietários legais ou os agricultores informais instalados antes do estabelecimento da reserva indígena ou da unidade de conservação e os cidadãos que as invadiram depois, com ou sem conhecimento de estar atuando à margem da lei. O problema é sério em algumas terras indígenas e é bastante menos grave nas unidades de conservação. Em ambos os casos a raiz da crise atual está na leniência das autoridades que não deram nem dão prioridade ao pagamento da desapropriação ou indenização devida e que deixam ocupar e invadir as terras que deveriam defender e, às vezes, inclusive aquelas que já foram desapropriadas e pagas.
Resolver esses problemas é muito fácil precisamente para os mais de duzentos deputados signatários do manifesto da Frente. Eles precisam apenas preparar e votar uma lei que outorgue a FUNAI e ao ICMBio os recursos para pagar as indenizações de lei aos proprietários e agricultores e para possibilitar uma reinstalação digna e justa dos demais "atingidos". Não se trata de somas de dinheiro exorbitantes e estão perfeitamente dentro das possibilidades orçamentárias do governo federal. Quando acusam o governo de ter sido displicente com as áreas protegidas eles esquecem outra vez que a falta de melhor trabalho da FUNAI e do ICMBio é consequência dos exíguos orçamentos que recebem. Isso também os deputados em questão poderiam resolver, se quisessem. Igualmente curioso é o fato de que alguns dos objetivos emitidos na justificativa nem precisam de uma "frente parlamentar" desde que "promover o aprimoramento da legislação federal sobre os procedimentos para reassentamento involuntário dessas populações e das questões fundiárias" é função dos legisladores. Ou seja, deles mesmos.
Objetivos recônditos
"Eles não se importam com os agricultores "atingidos". Cobiçam as terras dos indígenas e a das áreas protegidas para expandir a agroindústria de exportação, a mineração, a exploração florestal e, por certo, para facilitar ainda mais a construção de infraestruturas de energia e de transporte"
Por que, então, em vez de resolver o problema, que é parte das suas responsabilidades parlamentares, esses deputados criaram esta Frente? A única reposta possível é que na verdade eles não se importam com os agricultores "atingidos". Cobiçam as terras dos indígenas e a das áreas protegidas para expandir a agroindústria de exportação, a mineração, a exploração florestal e, por certo, para facilitar ainda mais a construção de infraestruturas de energia e de transporte. Cabe pensar que esta iniciativa é um passo a mais na estratégia de desenvolvimento desenfreado que dominou o país na última década. Essa mesma estratégia já mudou o Código Florestal e impede a aplicação do novo.Permitiu a eliminação de mais de cinco milhões de hectares protegidosnos últimos anos e abriu várias áreas protegidas para lagos artificiais de hidroelétricas. Já tentou permitir a mineração nessas áreas e reduziu a um mínimo o estabelecimento de novas unidades de conservação e reservas indígenas.
O caso também oferece lições aos defensores do meio ambiente e dos direitos indígenas. Por exemplo, os primeiros inflacionaram sem necessidade a área teoricamente protegida com categorias que a maior parte dos outros países não considera unidades de conservação, pois sua finalidade principal não é proteger a natureza. Tal é o caso das reservas extrativistas, das florestas nacionais e de outras. Pior ainda é a ridícula assunção que as reservas de biosfera, uma elucubração de burocratas internacionais, são áreas protegidas. Como já foi alertado inúmeras vezes incluir essas categorias como áreas protegidas apenas serve para dar argumentos aos que não querem que se proteja nada. É tempo de recomeçar a chamar pão de pão e vinho por vinho. A ideia de que as terras indígenas são áreas protegidas, que foi bem aproveitada pelos ruralistas e pelos promotores da Frente, não foi deles. Foi de alguns filósofos da área socioambiental.
Sabe-se que muitos deputados assinaram o documento sem estar cientes do que se tratava. Fazer isso sempre é um risco. Neste caso, o risco é prejudicar o povo que representam e a o seu próprio país. Mas nunca é tarde para retificar erros e, até se pode aproveitar da Frente já criada, usando seus objetivos e preparando os textos legais antes mencionados que resolverão o problema enunciado, e fazendo a pressão partidária necessária para que sejam aprovados. Os agricultores afetados terão seus direitos assegurados e ganharão o respeito e as condições que merecem, se tiverem o direito de ser reassentados; os indígenas terão a tranquilidade e os meios para usar mais e melhor as suas terras; a natureza que ampara a geração de energia e que protege e nutre a atividade agropecuária se beneficiará da regularização fundiária e de mais recursos para seu manejo efetivo. E o Brasil manterá sua reputação de nação que faz esforço verdadeiro para alcançar o tão ansiado desenvolvimento sustentável.

Disponível em: http://www.oeco.org.br/marc-dourojeanni/28350-frente-parlamentar-contra-areas-protegidas-para-que

terça-feira, 15 de abril de 2014

Projeto que libera mineração em UC tem novo relator
Daniele Bragança - 10/04/14

Com o objetivo de abrir 10% das Unidades de Conservação de proteção integral à exploração mineral, o projeto de lei 3.682/2012causou reboliço entre os ambientalistas ano passado após o relatório do deputado Bernardo Santana de Vasconcellos (PR-Minas Gerais) alterar a lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), que dá base a todo o sistema de áreas protegidas do país.
O projeto, que estava pronto para ser votado na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, acabou não sendo apreciado no ano passado. Como a composição das comissões muda todo ano, os projetos que ficam sem apreciação de um ano para o outro são redistribuídos entre os novos ocupantes do colegiado.
Foi assim que o PL 3.682/2012 caiu no colo do deputado ruralista Marcos Montes, do PSD de Minas. No último dia 18 de março, o parlamentar foi designado relator. De acordo com sua assessoria parlamentar, ainda não há uma data prevista para a apresentação do seu relatório.
Na comissão, o deputado terá 3 opções: pode apresentar o parecer pedindo a aprovação do projeto de lei sem modificação, o que significa que o projeto de autoria do deputado Vinícius Gurgel (PR-Amapá) se mantém intacto; com substitutivo, que na linguagem do Legislativo significa com modificação ou pela rejeição do projeto de lei.
Relembre o caso
O projeto de lei do deputado Gurgel tem como objetivo permitir a exploração mineral em 10% das Unidades de Conservação de proteção integral. Em contrapartida, os mineradores seriam obrigados a doar áreas com o dobro do tamanho das abertas à exploração comercial e com as mesmas características ecológicas e biológicas.
Na tramitação, o projeto sofreu modificações na mão do relator Bernardo Santana de Vasconcellos (PR-Minas Gerais), que além da permissão da mineração, alterou completamente a lei do SNUC. Entre as modificações, ele acrescentou um artigo que não existe na lei atual e que lista situações que proibiriam a criação de Unidades de Conservação, retirou parágrafos que regulavam as atividades permitidas às populações tradicionais dentro das UCs de Uso Sustentável e dispensou a obrigatoriedade de lei específica para alterar – aumentar ou reduzir – o tamanho ou limites das Unidades de Conservação, contra o que dispõe o Inciso III do artigo 225 da Constituição Federal.
Como o antigo parecer do deputado Bernardo Santana foi descartado, o que está valendo agora é o projeto original, que poderá ser modificado pelo novo relator.
 Disponível em: http://www.oeco.org.br/noticias/28203-projeto-que-libera-mineracao-em-uc-tem-novo-relator

terça-feira, 25 de março de 2014

Especialista reclama falta de uma lei federal sobre o licenciamento ambiental

A ausência de uma lei federal sobre o licenciamento constitui uma das principais lacunas da legislação ambiental brasileira. A complexidade e as controvérsias que envolvem o tema têm, no entanto, dificultado o avanço da discussão no Congresso.
Somente na Câmara dos Deputados, a definição de regras federais mais amplas sobre o tema é debatida há 25 anos. Uma das propostas está pronta para ser analisada pelo Plenário desde 1998 (PL 710/88 e apensado). Outras 12 (PL 3729/04 e apensados), mais recentes, são analisadas em conjunto e chegaram a ter, em sua maioria, recomendação de aprovação pelo último relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, deputado Penna (PV-SP). As propostas aguardam, desde o início do ano, posição da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural.
Critérios e prazos
Atualmente, os critérios e prazos para o licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras ou capazes de gerar impactos ambientais estão listados em resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), principalmente as resoluções 1/86 e 237/97, cuja competência para esse fim vem desde a regulamentação da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (6.938/81; regulamentada pelo Decreto 99.274/90).

Vários são os questionamentos sobre a constitucionalidade e legalidade das normas. Em entrevista ao programa da Rádio Câmara Com a Palavra, a consultora legislativa da Câmara Roseli Senna Ganem, especializada no tema, disse que uma lei específica traria mais segurança jurídica à questão. “O licenciamento ambiental é um dos mais importantes da legislação ambiental. Um dos problemas relacionados ao licenciamento não é o processo em si. É a falta de integração das políticas setoriais com a Política Nacional do Meio Ambiente.”
A consultora acrescenta que as políticas setoriais são muitas vezes levadas à frente sem a devida consideração dos requisitos ambientais. “O processo do licenciamento fica sobrecarregado, tendo que se avaliar muitos dados e com muitas medidas mitigadoras, compensatórias a serem exigidas.”
Avaliação ambiental estratégica
Para Roseli, a avaliação ambiental estratégica das políticas e programas de governo é outra lacuna importante da legislação ambiental brasileira a ser resolvida.

Em seu relatório sobre as propostas que tratam de licenciamento no País, o deputado Penna recomenda a inclusão da avaliação ambiental estratégica entre os instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente.
Pelo texto, a avaliação teria o objetivo de prever e medir o impacto ambiental potencialmente associado a uma determinada política, plano ou programa.
Reportagem – Ana Raquel Macedo
Edição – Regina Céli Assumpção

Reportagem da Agência Câmara de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 25/03/2014

Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2014/03/25/especialista-reclama-falta-de-uma-lei-federal-sobre-o-licenciamento-ambiental/

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Repotenciação garantiria geração de energia, reduzindo necessidade de novas hidrelétricas


O Brasil poderia ganhar a capacidade de produzir mais 11.000 MW de potência elétrica sem construir uma única nova usina, apenas reformando e aproveitando espaços já existentes em hidrelétricas já instaladas, mostra a dissertação de mestrado “Potencial de repotenciação de usinas hidrelétricas no Brasil e sua viabilização”, defendida pela engenheira Elisa de Podestá Gomes na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp. Esse número se aproxima da potência instalada total prevista para a Usina de Belo Monte, no Rio Xingu, de 11.233 MW.
“Na realidade brasileira ainda há espaço para a instalação de novas usinas hidrelétricas, sujeitas, evidentemente, a pressões e exigências socioambientais crescentes. Por outro lado, a repotenciação de usinas hidrelétricas existentes tem sido muito pouco explorada até o momento. Tratam-se de duas abordagens alternativas, porém complementares, no atual contexto brasileiro. É claro que, quanto mais obras de repotenciação forem realizadas, mais se posterga a necessidade de construção de algumas novas usinas”, escreve a autora na conclusão de seu trabalho.
“Repotenciação” é uma reforma da estrutura de geração energética de uma usina hidrelétrica, com a substituição de tecnologias ultrapassadas por alternativas modernas. “Quando uma usina opera há muitos anos, mais de 20, 30, 40 anos em funcionamento, seus componentes se desgastam”, explicou Elisa ao Jornal da Unicamp. Depois de algum tempo, é preciso trocar os principais componentes da usina, e pelo fato de a tecnologia atual ser mais desenvolvida do que quando a usina foi construída, em vez de apenas fazer uma manutenção, é possível aprimorar seu desempenho. “O objetivo é sempre conseguir condições melhores. Tornar a usina melhor do que era, em questões técnicas e na produção de potência e/ou energia para o Sistema Interligado Nacional”.
O processo, nota a autora, é mais barato que a construção de mais usinas, já que não envolve novas obras de construção civil. Além disso, tem menos impacto ambiental e social, uma vez que toda a fase traumática de instalação da estrutura – a formação do lago, o deslocamento de populações – já ocorreu no passado. “A repotenciação é, sem dúvida, uma das melhores e mais econômicas formas de aumentar a capacidade de geração em um curto espaço de tempo sem impactos ambientais significativos”, diz a dissertação.
Para realizar sua análise, Elisa seleciona  43 usinas hidrelétricas brasileiras com mais de 30 anos e com unidades de geração de energia de 15 MW ou superior. Essas usinas representam quase 20% de toda a potência instalada no país. Ela simula três tipos de repotenciação: mínima, leve e pesada. A primeira apenas recupera a capacidade original da usina, enquanto que a última envolve a troca de componentes essenciais da unidade. A dissertação afirma que, se todas as 43 usinas passassem por processos de repotenciação pesada, o aumento da capacidade instalada no Brasil seria de mais de 6.000 MW.

Poços
Outros 5.000 MW poderiam ser ganhos, afirma o trabalho, com o aproveitamento dos “poços” de usinas existentes – “poço”, no caso, é o nome dado ao espaço deixado na estrutura da usina para a instalação de equipamentos geradores de energia que, por vários motivos, nunca chegaram. “Eram obras de concessionárias estatais, que depois de alguns anos não tinham dinheiro para completar a obra, por exemplo”, disse Elisa. A dissertação identificou 12 usinas como “poços” por todo o Brasil, do Paraná ao Pará.
Para fazerem sentido econômico para as concessionárias que assumiram a tarefa de produzir energia no Brasil, após a reorganização do setor elétrico e as privatizações realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso, as estratégias defendidas na dissertação requerem mudanças no sistema regulatório atual, diz Elisa.
“Após este período de privatizações, o governo brasileiro esperava que a iniciativa privada investisse no setor elétrico. Contudo, por diferentes motivos, como a falta de um marco regulatório bem definido, planejamento energético e regras para o setor, e um cenário institucional incerto, o investimento ocorrido não foi o esperado e nem suficiente”, diz o texto, que recorda a crise do “apagão” de 2001.
“Com o racionamento que ocorreu em 2001, as paradas de máquinas para manutenção ou a suspensão de obras teriam que ser muito bem planejadas, pois causam queda na produção de energia”, lembra a dissertação. “O custo de indisponibilidade das máquinas geradoras foi encarecido, aumentando os valores de uma obra de repotenciação, a ponto, até, de inviabilizar este tipo de projeto”.
No governo Lula, uma segunda reforma do setor elétrico entrou em curso. “No novo modelo institucional do setor elétrico brasileiro, a geração compete pelo mercado através dos leilões de energia. As empresas concessionárias distribuidoras devem contratar seu suprimento com cinco anos de antecipação, para sinalizar aos geradores seu aumento de demanda com a devida antecedência para que os geradores possam executar a tempo suas eventuais obras de expansão”, descreve o trabalho.
“O problema que existe é com a regulação da energia”, explicou a autora, sobre os obstáculos atuais à repotenciação e ao aproveitamento dos “poços”. “Todo o sistema elétrico é interligado, e para fazer parte dele, é preciso participar de leilões de energia . O preço que vence o leilão – o mais baixo – é a remuneração daquela usina pelo período de concessão. Você sempre vai ganhar aquele valor, para gerar o tanto que for solicitado pelo ONS. Não há incentivo para gerar mais. Eu fiquei muito inconformada quando descobri isso”, disse ela à reportagem. “Não há incentivo para produzir além do contratado. Hoje não há nenhuma lei que diga que a concessionária será reembolsada se investir para aumentar sua potência.”
Elisa argumenta, ainda, que tanto a repotenciação quanto o uso dos “poços” reduziriam as dificuldades de logística, como a construção de novas linhas de transmissão, e também os riscos do sistema, já que longas linhas, como as que deverão ligar as futuras usinas da região amazônica ao Centro-Sul do país, ficam expostas a intempéries.
“O governo divulgou que quer antecipar o leilão da usina de Tapajós, uma usina nova, também na região norte, e de algumas linhas de transmissão no norte, depois de mais um blackout ocorrido em fevereiro“, disse Elisa. “Contudo, novamente, não se pensa em outras possibilidades, como a repotenciação. Como já foi dito, a construção de uma nova usina demora muito mais tempo do que uma obra de repotenciação”.
A pesquisadora lembra ainda que, conforme aumenta a participação de usinas termelétricas, usinas hidrelétricas sem reservatório de acumulação – as chamadas “usinas de fio d’água”, como Belo Monte – e outras geradoras que utilizam fontes de energia com grande variabilidade e baixa previsibilidade, como as eólicas, aumenta também a necessidade de opções para garantir o atendimento dos momentos de demanda máxima do setor elétrico, a chamada ponta de carga. “A supermotorização de usinas hidrelétricas possibilita isto”, disse Elisa. “Mas as atuais regras de funcionamento do setor elétrico brasileiro não provêm estímulos econômicos para tal. Não existem, por exemplo, leilões de capacidade adicional para atendimento de ponta, como ocorre em diversos países. Isto precisa mudar logo, para se evitar blackouts recorrentes no futuro”.

História
Repotenciações são comuns em países que adotaram a energia hidrelétrica antes do Brasil, e que já têm quase todo seu potencial de geração hídrica aproveitado. “Países como a Áustria, Canadá, Estados Unidos da América, Finlândia, Noruega e Rússia, dentre outros, possuem um parque hidrelétrico mais antigo que o brasileiro. Por já terem utilizado quase todo o seu potencial hidráulico e as outras fontes de energia serem mais caras e, muitas vezes, poluentes, a repotenciação de usinas hidrelétricas antigas tem sido comum nestas nações”, afirma a dissertação. “Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 110 usinas hidrelétricas já tinham sido repotenciadas até 2006”.
Embora a maior parte da eletricidade consumida no Brasil seja gerada em usinas hidrelétricas, com uma participação de mais de 83% em 2009, o país ainda conta com um grande potencial inexplorado, mas quase todo ele – quase 90% – concentrado na região Norte, nas bacias dos rios Amazonas e Tocantins.
Por conta disso, “boa parte do potencial hidrelétrico remanescente possui um custo de transmissão elevado, devido às longas distâncias envolvidas e inúmeros problemas socioambientais, associados, muitos deles, à localização da maioria deste potencial remanescente na Amazônia”, lembra o texto.
Algumas usinas brasileiras já foram repotenciadas. O primeiro caso, citado na dissertação, foi o da usina de Rasgão, no Rio Tietê, propriedade da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (EMAE). Localizada em Pirapora do Bom Jesus, a usina viu suas primeiras unidades entrarem em operação em 1925. Desativada em 1961, foi repotenciada em 1989, com aumento de 50% na capacidade instalada, e opera até hoje.
A dissertação registra 18 usinas brasileiras que já passaram por processos de repotenciação, modernização ou grandes reparos, totalizando 94 unidades geradoras de energia. As unidades afetadas tinham idade média de 35,7 anos e obtiveram um aumento médio de potência de 17,8%.
Depois da usina de Rasgão, a mais antiga unidade repotenciada foi a Pequena Central Hidrelétrica (PHC) de Dourados, da CPFL, no Rio Sapucaí-Mirim. Construída em 1926, ela foi reformada em 2000, com um ganho de 68% no potencial instalado, chegando a 10,8 MW.
As primeiras repotenciações no Brasil, após a de Rasgão, ocorreram em 1996, afetando as usinas de Jupiá (de 1969) e de Ilha Solteira (de 1973). Os ganhos de potência instalada foram de 9,9% e 6,6%, respectivamente. Já a mais recente foi a da usina de Três Marias, no Rio São Francisco. Suas operações tiveram início em 1962, e a instalação passou pelo processo em 2011, com ganho de potência de 1,5%.

Publicação
Dissertação: “Potencial de repotenciação de usinas hidrelétricas no Brasil e sua viabilização”
Autora: Elisa de Podestá Gomes
Orientador: Sérgio Valdir Bajay
Unidade: Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM)

Matéria do Jornal da Unicamp Nº 588, reproduzida pelo EcoDebate, 26/02/2014
Disponível em: http://www.ecodebate.com.br/2014/02/26/repotenciacao-garantiria-geracao-de-energia-reduzindo-necessidade-de-novas-hidreletricas/

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Realmente não existe hoje obra mais polêmica que a transposição. Belo Monte talvez? Bem, a história dirá. O tema ainda apaixona. Dos dois lados...

Transposição do rio São Francisco: via de mão única


Por Marcia Dementshuk, em A Pública.
Na primeira matéria do projeto Reportagem Pública, a repórter viaja ao Eixo Leste – e mostra como a população está sendo afetada pelas obras
“Sem dúvida, com a transposição do rio São Francisco será oferecida segurança hídrica para o Nordeste”, garantiu o diretor-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA), Vicente Andreu Guillo, durante nossa entrevista. A aposta do governo federal é alta: o orçamento atual da transposição é de R$ 8.158.024.630,97 (o dobro do previsto inicialmente), financiados pelo Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC I e II). Trata-se do maior empreendimento de infraestrutura hídrica já construído no Brasil, que mudará para sempre a cara da região.
Menos de 5% das reservas hídricas do país estão no Nordeste do país, que detém entre 12% e 16% das reservas de água doce no planeta. O clima semiárido, seco, quente e com poucas chuvas domina o sertão, território com mais de 22,5 milhões de habitantes (Censo IBGE/2010).
Neste cenário, a notícia de que seria possível transportar a água do Rio São Francisco para regiões mais secas transformou-se em esperança para os nordestinos de todas as épocas. Fala-se nessa obra desde os tempos do Império, quando, em 1877, o intendente do Crato, no Ceará, apresentou para dom Pedro II um projeto que levaria águas do Rio São Francisco até o rio Jaguaribe, no seu estado.
A obra foi iniciada 130 anos depois, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com base no projeto elaborado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Depois do investimento inicial, de cerca de R$ 4 bilhões, o rendimento dos trabalhos diminuiu em 2010 por problemas de adequação do Projeto-Base à realidade da execução (leia mais aqui), e novas licitações precisaram ser feitas. Somente no final de 2013, conforme o Ministério da Integração Nacional, responsável pelo projeto, as obras foram 100% retomadas.
Hoje, o empreendimento aponta 51% de avanço, e o orçamento dobrou. A nova previsão para a conclusão é em dezembro de 2015, quando as águas deverão alcançar afinal o leito do rio Paraíba, no Eixo Leste, e o reservatório Engenheiro Ávidos, pelo Eixo Norte, ambos na Paraíba.

Ali do lado, falta água

O projeto prevê que as águas captadas do Rio São Francisco em dois canais de aproximação (no Eixo Norte, em Cabrobó e no Eixo Leste, no reservatório de Itaparica, em Floresta, ambos em Pernambuco) serão conduzidas pelos canais até os reservatórios, de onde abastecerão dezenas de municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, aproveitando a rede de saneamento existente. Projetos referentes a tomadas para uso difuso (pontos de tomada de água captadas ao longo dos canais para abastecer as comunidades instaladas nas proximidades) ainda estão em fase de elaboração. O Ministério da Integração ainda não definiu que pontos serão esses, nem os locais exatos de captação. Da mesma forma, os valores finais do custo desta água para a população ainda estão em estudo por parte do governo federal.
A realidade, porém, é que há mais de dois anos, muitos moradores dos municípios do semiárido nem sequer têm água nas torneiras; usam a água distribuída por caminhões-pipa, de poços particulares ou públicos (a maioria com água salobra) ou da chuva (quando chove).
Em Caiçara, distrito de Custódia, Maria Célia Rodrigues da Silva disse que falta água nas torneiras desde o início das obras do PISF   (Foto: Mano Carvalho)
Em Caiçara, distrito de Custódia, Maria Célia Rodrigues da Silva disse que falta água nas torneiras desde o início das obras do PISF (Foto: Mano Carvalho)
Em Caiçara, distrito de Custódia, Pernambuco, próximo ao Lote 10, que corresponde a atual Meta 2L, da construção (veja o mapa), a população toma a água enviada pelo Exército, em caminhões-pipa, uma vez por semana. Toda semana é a mesma cena: a água é despejada em uma cisterna central, e cada morador tem que ir buscar – há carroceiros que cobram em torno de R$ 5,00 ou R$ 7,00 por viagem.
O riacho Custódia passa próximo da casa de Manoel Rodrigues de Melo, agricultor de 52 anos, mas o fio de água que resta é salobra, e só serve para lavar a casa ou os estábulos. “A água boa vem de Fátima, a uns 40 quilômetros daqui. O que a gente mais precisa aqui é água, que não tem”, suplica o agricultor. Nessas condições, ele e a esposas criaram oito filhos. Todos partiram em busca de melhores condições de vida. “É muito filho, até parece mentira! Mas antigamente os invernos eram melhores, chovia mais”.
Manoel Rodrigues de Melo, que nunca saiu da região onde nasceu, viu seu terreno ser dividido pelo canal do Eixo Leste: ficou com seis quilômetros de um lado do canal e com a mesma medida do outro. Dono de um sotaque sertanejo carregado, com poucos dentes na boca, as mãos calejadas e a pele castigada pelo sol, Manoel conta que agora os bichos têm de usar a ponte sobre o canal para passar. “Senão, eles ficam ou do lado de cá, ou do lado de lá, ou tem que fazer um volta tremenda lá por baixo, onde tem um lugar pra passar. Mas o que mais a gente espera é essa água que ‘tá’ pra vir. Isso vai mudar a nossa vida aqui. Vai ser muito bom”, diz o agricultor, ansioso.
“A gente tinha água pela torneira, era ruim, mas dava pra limpeza. Mas desde que começou essa construção (referindo-se à transposição) ela foi cortada”, lembra-se a vizinha de Manoel, a dona de casa Maria Célia Rodrigues da Silva, que cuida da mãe doente, com 82 anos. “Nem as cisternas não enchem. Estamos com dois anos de seca”, completou. A água encanada provinha de um poço escavado em outro vilarejo próximo de Caiçara, Fiúza, mas ela não sabe dizer se foi cortada em função das obras da transposição, ou se o poço secou. Mesmo com o encanamento de sua casa enferrujado e sem saber se terá água para beber no dia seguinte, a vida de Maria Célia continua. Ela não teve filhos. Cria alguns bodes, cabras e galinhas no quintal da casa e conta com o dinheiro da aposentadoria de sua mãe para o sustento das duas. Trabalhava na roça, mas nada mais resistiu à seca de dois anos.
TRADICIONAL COMO A SECA, O PÍFANO DE ZABÉ
Zabé da Loca (Foto: Mano de Carvalho)
Zabé da Loca (Foto: Mano de Carvalho)
A tocadora de pífano Zabé da Loca nos recebeu às vésperas de completar 90 anos. Quando tinha 79 anos, 25 dos quais passados em uma gruta, na Serra do Tungão, próximo a Monteiro (PB), Zabé se tornou conhecida no mercado de música regional. Chegou a dividir o palco com músicos como Hermeto Pascoal e Gabriel Pensador em shows no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Paraíba e Brasília.
Típica sertaneja, que jamais conheceu o conforto de abrir uma torneira de onde corresse água em abundância, Zabé teve 14 irmãos, oito dos quais morreram por doenças originadas pela falta de água e desnutrição. Fumante inveterada, persistiu no hábito mesmo depois do tratamento de combate a um enfisema pulmonar e à pneumonia e não deixou de enrolar um cigarrinho durante a visita, enquanto lembrava: “Nessa serra sempre teve água da chuva que empoçava nas pedras. Mas tinha anos que não encontrávamos água em canto nenhum. A gente tinha que ir até o rio (afluente do rio Paraíba, próximo da nascente) pegar”.
Quando comentamos sobre a transposição do rio São Francisco ela reagiu: “esse negócio existe mesmo?”

Para o ex-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, Luiz Gabriel Azevedo, o custo de operação da água da transposição é elevado e requer investimentos vultosos, quando comparado a outras alternativas. “Parte do pacto, quando se pensou esse projeto, é de que os estados fariam um trabalho forte de racionalizar o uso dentro de seus territórios, de melhorar o sistema de gestão; e os estados estão aquém dessa expectativa”, analisa. Ele alega que os estados deveriam investir mais em obras que garantissem os recursos hídricos, como manutenção e construção de açudes, estudos para perfurações de poços e principalmente em obras de saneamento e rede de distribuição de água.
“Não valerá à pena trazer uma água cara para se desperdiçar do outro lado. Não dá para executar um projeto complexo se os recursos dos açudes não forem bem usados, se não houver um sistema de distribuição, se não se tem um sistema de gestão eficiente nos estados que vão receber para gerir a água”, complementou Luiz Gabriel Azevedo.
Por Lei, o órgão competente que determinará como a água será distribuída é o Conselho Gestor do Projeto de Integração do Rio São Francisco, instituído pelo Decreto 5.995/2006. Esse Conselho é formado por representantes dos estados beneficiados com o empreendimento – Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará – e tem por objetivo, entre outros, tratar da alocação das águas e dos rateios dos custos correspondentes.
 Desalentados pela seca, moradores de cidades do Sertão nordestino aguardam a chegada das águas da transposição (Foto: Mano Carvalho)
Desalentados pela seca, moradores de cidades do Sertão nordestino aguardam a chegada das águas da transposição (Foto: Mano Carvalho)
Para o diretor-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA) destaca que o Nordeste ainda carece de um conjunto de soluções hídricas, como aproveitamento máximo da escassa água da chuva, o controle do uso das águas dos reservatórios ou a transposição de águas de outras bacias hidrográficas, já que a escavação de poços do semiárido é considerada inviável. De acordo com o relatório de impacto Ambiental do PISF, (RIMA), “a maioria do território semiárido (70% da região) dispõe de pouca água subterrânea e possui solo impermeável, ou seja, absorve pouca água, limitando sua capacidade de disponibilidade. Além desse aspecto, a água, em geral, é de baixa qualidade”.

Realocação de moradores e uma vila partida ao meio

Cerca de 800 famílias foram deslocadas e receberam indenizações entre cerca de R$ 10 mil a R$ 15 mil para dar passagem às obras da transposição – de acordo com a gerência de Comunicação da CMT Engenharia, empresa responsável pelo acompanhamento das ações de compensação socioambiental do PISF – ao longo dos eixos Norte e Leste, em Pernambuco e no Ceará.  De acordo com o supervisor de obras da empresa Ecoplan, Adilson Leal, porém, as terras não entraram na avaliação das propriedades a serem indenizadas por possuírem baixo valor de mercado, segundo a empresa, em função da pouca qualidade da terra para o plantio ou para o pasto, em uma região onde a chuva é escassa. Só as benfeitorias foram ressarcidas.
Abastecimento de água potável para a população em Rio da Barra (PE), por onde passam os canais da transposição, ocorre duas vezes por semana (Foto: Mano de Carvalho)
Abastecimento de água potável para a população em Rio da Barra (PE), por onde passam os canais da transposição, ocorre duas vezes por semana (Foto: Mano de Carvalho)
Em Rio da Barra, distrito de Sertânia, em Pernambuco, comunidade que beira o canal na altura do Lote 11, que corresponde à Meta 2L, (veja o mapa), a população se encontra duas vezes por semana na cisterna pública para se abastecer de água potável proveniente de um poço artesiano cavado pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Um funcionário da prefeitura de Sertânia controla o abastecimento gratuito dos galões trazidos pela população na noite anterior. O local acaba se tornando o ponto de encontro do povoado. Mães carregando baldões chegam com as crianças arrastando baldes menores, carroças carregadas de galões estacionam ao lado e todos aguardam com paciência pelo precioso líquido.  Maria José Araújo Pinheiro, uma dona de casa tímida, mas de olhos atentos, aguardava sua vez quando comentou que sua mãe, Creusa Davi da Silva, aceitou a oferta do governo para desocupar suas terras no sítio Chique-Chique. “Eles ofereceram pra ela R$ 14.400, ela pegou e foi morar em Sertânia. Como ela ganha aposentadoria, está bem. Mas pagaram só pela casa”, disse Maria José.
 O marido de Márcia Freire, Adilson Salvador, de Rio da Barra (PE,) é técnico ambiental nas obras da transposição. (Foto: Mano de Carvalho)
O marido de Márcia Freire, Adilson Salvador, de Rio da Barra (PE,) é técnico ambiental nas obras da transposição. (Foto: Mano de Carvalho)
Márcia Maria Freire Araújo vem do outro lado do canal do Eixo Leste da transposição pegar água na cisterna pública de Rio da Barra. Ela chega sempre antes das seis da manhã, na companhia do cunhado que conduz uma carroça puxada a burro onde transportam os galões de água. Andam cerca de dois quilômetros, atravessam o canal por uma ponte provisória e os depositam em uma fila de recipientes que começou a ser formar no dia anterior. Sua família mora em outra propriedade pequena, que teve uma parte indenizada pelo Ministério da Integração Nacional. “Eu não acho que é justo perder um pedaço de terra, mas se é para fazer o bem pra tanta gente, então aceitamos”, conforma-se. Ela vê o lado bom: seu marido, Adilson Salvador, é empregado na construtora SA Paulista como técnico ambiental na transposição. “Ele conseguiu emprego desde o início da obra, primeiro por outra empresa, e agora pela Paulista”, orgulha-se Márcia Maria.
Em outra localidade, na zona rural de Sertânia, os moradores do Sítio Brabo Novo ficaram divididos pelo canal. Pelo menos treze famílias preferiram a remoção para terras acima do reservatório Barro Branco, ainda em fase de retirada da vegetação. Um número bem maior de famílias permaneceu do outro lado do reservatório.
Maria da Conceição Siqueira, viúva, de 51 anos, e seu filho, de 18 anos, deixarão a antiga moradia para trás e irão para Sertânia. “Já recebi R$ 7.500,00 por aquela casinha ali”, diz, apontando para uma casa que ficará submersa pelo reservatório, “e ganhei essa casa aqui. Mas vamos fechá-la e ir embora”. “Fiquei com um pedaço de terra muito pequeno, (cerca de 50m²) não dá pra nada. Meu filho está em tratamento, ele teve um derrame no cérebro e é melhor a gente ficar lá”, diz.
Lucinéia ferreira Florêncio não acredita em distribuição justa das águas da transposição (Foto: Mano de Carvalho)
Lucinéia ferreira Florêncio não acredita em distribuição justa das águas da transposição (Foto: Mano de Carvalho)
A família das irmãs Lucicléia e Lucinéia Ferreira Florêncio, vizinhas de Maria da Conceição, tomou uma decisão diferente. “Nossa primeira casa era onde agora vai ser o reservatório, e já foi indenizada em 2007. Mas esse reservatório ocupou quase a metade do nosso terreno. Como ainda sobraram terras desse outro lado e esta é uma área liberada, decidimos construir aqui, com o dinheiro da indenização”, contou Lucinéia. Ela não soube informar o tamanho do sítio, mas a nova casa é grande. No terreno persiste uma plantação de palmas (um tipo de cactos que serve para alimentar os animais) e algumas árvores frutíferas. O resto foi perdido: abacaxi, macaxeira, milho, feijão… A irmã, Luciclélia, casou-se e construiu uma casa menor ao lado, onde vive com o marido e uma bebê de nove meses.
Lucinéia, professora, duvida que no futuro haja uma distribuição justa das águas da transposição. “Tem os pontos positivos, mas acho que vão ter os negativos também. Eu penso que com essa água toda vão começar a fazer mais obras por aqui e eu não sei se toda a comunidade vai ter acesso a essa água quando quiser. O pequeno produtor nunca é beneficiado como os grandes proprietários, nunca tem igualdade. E acho que o crescimento vai ser desordenado. A comunidade já tem uma associação de moradores, mas ainda não sabe como abordar esse assunto”, lamentou Lucinéia, dizendo que não há orientação nenhuma dos governos sobre isso.
O Sítio Passagem da Pedra, em Sertânia, dividido para a construção do túnel; zeladores recuam cerca que delimita área da propriedade (Foto: Mano de Carvalho)
O Sítio Passagem da Pedra, em Sertânia, dividido para a construção do túnel; zeladores recuam cerca que delimita área da propriedade (Foto: Mano de Carvalho)
Na área onde será construído o túnel entre Sertânia e Monteiro, no Lote 12, atual Meta 3L (veja mapa), a retomada das obras em dezembro significou a perda de mais 100 metros de terreno pelos agricultores, além dos 100 metros que já tinham recuado. “Fazer o quê? Os donos já receberam a indenização e agora que vieram construir pediram mais esse pedaço de terra”, explicam Lenilton Cordeiro dos Santos e Quitéria Araújo da Silva, zeladores do sítio Passagem da Pedra, cortado tanto pelo canal da transposição quanto pelo túnel.
“Ninguém sabe”, afirmou o capataz Aílton Ferreira falando sobre a data que deverá chegar as águas da transposição no túnel na divisa entre Pernambuco e Paraíba (Foto: Mano de Carvalho)
“Ninguém sabe”, afirmou o capataz Aílton Ferreira falando sobre a data que deverá chegar as águas da transposição no túnel na divisa entre Pernambuco e Paraíba (Foto: Mano de Carvalho)
No sítio ao lado, Aílton Ferreira de Oliveira cuida do terreno da sogra, que também foi reduzido. “Agora, o gado que sobrou, cinco cabeças, está no curral e come mandacaru, pois não tem mais o que comer por causa da seca, e o terreno ficou pequeno pro pasto”.
“E essa água, quando chega?”, interrompe o capataz do sítio, que prossegue, num monólogo: “Ninguém sabe…”.
Para ler mais  sobre: " Uma viagem ao canteiro de obra", "Na contramão da transposição", "O povo contra areeiros" e " A Transposiçã,: um projeto dos tempos do Império", Acesse: